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segunda-feira, 5 de julho de 2010

A mãe imortal da medicina

O drama desconhecido da mulher que abriu caminho para uma revolução
O Globo, 03-julho-2010
Ana Lucia Azevedo
 
Em 4 de outubro de 1951, uma mulher chamada Henrietta Lacks morria, após meses de sofrimento, numa ala destinada a “pessoas de cor”, no Hospital Johns Hopkins, em Baltimore, Estados Unidos.

Aos 31 anos, Henrietta fora derrotada por um câncer de colo de útero.

Deixou cinco filhos órfãos. A doença devastou sua família. Mas Henrietta, sem saber, possibilitou uma revolução na medicina. Uma revolução que está por trás de uma imensidão de avanços médicos — da vacina da pólio à quimioterapia.

Mas a história de Henrietta é também um drama sobre injustiças dos sistemas de saúde, impessoalidade da ciência, pobreza e racismo.

Lançado este ano nos EUA e no Reino Unido, “The imortal life of Henrietta Lacks” (“A vida imortal de Henrietta Lacks”, Ed. Crown, sem previsão de lançamento no Brasil), da escritora e médica americana Rebecca Skloot, abriu uma discussão sobre direitos de informação de pacientes e o acesso à medicina.

E incomodou muita gente, de pesquisadores a grandes laboratórios farmacêuticos.

As células de Henrietta foram extraídas de seu tumor sem o seu consentimento durante uma cirurgia, meses antes de sua morte. Nem ela nem o marido Day Lacks foram informados pelo médico George Gey de que uma parte do tumor seria usada em pesquisa — um procedimento padrão naquela época.

“Hoje, pacientes precisam dar um consentimento geral antes de uma cirurgia, mas se amostras de células forem usadas depois em pesquisa, os médicos não precisam lhe contar”, destacou Rebecca Skloot.

A cirurgia não salvou a vida de Henrietta, mas as células possibilitaram alguns dos mais importantes progressos da medicina nos últimos 60 anos. Conhecidas pelo nome de código HeLa — das iniciais de Henrietta — elas se tornaram a primeira linhagem imortal da história. Por muitos anos, cientistas tentaram multiplicar células em laboratório, mas elas sempre morriam. As células de Henrietta foram as primeiras a se replicar indefinidamente. Em termos científicos, são imortais. Ninguém sabe exatamente por que as células HeLa se multiplicam tão bem. Uma explicação seria a extrema agressividade do tumor que matou Henrietta.
Família nunca recebeu benefícios
Culturas celulares servem, por exemplo, para testar novos remédios, estudar como uma doença evolui, descobrir se uma droga é segura e avaliar os efeitos da poluição no corpo humano.

Permitem investigar a ação de vírus e bactérias. Praticamente qualquer pessoa que já tenha tomado um medicamento se beneficiou das células de Henrietta Lacks. Vacinas, quimioterapia, reprodução in vitro, mapeamento genético — tudo isso só foi possível graças a uma jovem mãe que ganhava a vida com o cultivo do tabaco.

Cientistas já produziram mais de 50 milhões de toneladas de células de HeLa. Um pesquisador estimou que, juntas, essas células poderiam dar pelo menos três vezes a volta na Terra — Henrietta, um mulher lembrada como alegre e corajosa, media cerca de 1,5 metro. Em todo o mundo, as HeLa foram usadas em mais de 60 mil estudos científicos e Rebecca Skloot estima que dez novas pesquisas sejam concluídas a cada dia. Quando a família Lacks descobriu, por obra do acaso, o que havia sido feito, em 1973, as células de Henrietta já haviam viajado ao espaço — para testar a ação da falta de gravidade.

E a descoberta não trouxe qualquer melhoria a suas vidas.

“Para a ciência médica, não há problema se você usa células de uma pessoa em pesquisas para o bem comum.

Mas a história de Henrietta mostra que isso não é bem verdade — certamente não nos Estados Unidos. As células dela foram empregadas no desenvolvimento de tratamentos, mas esses mesmos tratamentos não estão ao alcance de quem não pode pagar, famílias pobres como os Lackses”, escreveu Rebecca.

Ela acrescenta que essas mesmas células ainda enriqueceram empresas, como bancos de células e indústrias de biotecnologia. Hoje, um tubo de HeLa custa cerca de US$ 260. A família jamais viu um centavo sequer.

Na verdade, tribunais americanos têm negado qualquer direito a pessoas cujas células e órgãos tenham sido usados em pesquisas que geraram lucros
Rebecca conta que se interessou pela história de Henrietta em 1988, numa aula de biologia, quando aprendeu a importância das HeLas, mas soube apenas que vinham de uma mulher negra que morrera de câncer. Não se satisfez e dedicou mais de 20 anos a pesquisar a vida da dona daquelas células. Entrevistou centenas de pessoas, ficou amiga da família e escreveu um livro para humanizar a ciência. Qualquer estudante de biologia ou medicina sabe o que são HeLas, mas pouca gente conhecia a história da mulher de onde vieram.

“Cientistas não gostam de pensar nas HeLas como pequenos fragmentos de Henrietta porque é muito mais fácil fazer ciência quando você dissocia suas amostras das pessoas das quais elas vieram”, afirmou à Rebecca um pesquisador chamado Robert Stevenson.

Henrietta se despediu do marido com o pedido de que cuidasse das crianças. Day Lacks tentou, mas com um salário miserável de operário negro na Virgínia dos anos 50 (US$ 0,80 a hora) não conseguiu evitar que a filha mais velha Elsie morresse pouco depois da mãe, internada no Hospital for the Negro Insane. A filha Deborah se tornou mãe adolescente e depois contraiu artrite, osteoporose, surdez nervosa e depressão. Outro filho, Sonny, tinha problemas cardíacos. O próprio Day teve os pulmões destruído pelo trabalho com amianto e morreu, em 2002, com câncer de próstata.

Em seu livro, Rebecca conta que a família Lacks, extremamente religiosa, acredita que, de alguma forma, o espírito de sua mãe continua entre nós, em cada uma das células HeLa espalhadas pelo mundo.

Para Rebecca, a maior lição da história de Henrietta, numa época em que a indústria médica se tornou um negócio bilionário e genes podem ser patenteados, é discutir o direito sobre o nosso próprio corpo e os limites e deveres da medicina.

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