Estive num evento recentemente e, enquanto
aguardávamos o início da cerimônia, comecei a conversar sobre amenidades com
uma pessoa conhecida. Num dado momento, ela comentou sobre o episódio em que um
homem negro, numa festa black, chegou acompanhado por uma mulher branca, com
quem dançou animadamente, sem se preocupar com os olhares de reprovação. Essa
mesma conhecida também comentou, indignada, sobre as mulheres negras que
estavam com homens brancos na festa e chamou a ambos, negros e negras
acompanhadas por brancas/os, de “palmiteiros”[1]. Não sei se ela não
lembrava do fato ou queria apenas me provocar para que emitisse opinião, mas argumentei
que eu mesma sou casada com um homem branco e que muitas mulheres negras não se
relacionam com homens negros por falta de oportunidade, não por rejeição a esse
tipo de relacionamento. E com a expressão “falta de oportunidade” não quero simplesmente
afirmar que os homens negros rejeitam mulheres negras e preferem as brancas, como
é comumente afirmado, como também apontar para a incompatibilidade de
interesses, projetos, etc.
As
narrativas sobre esses relacionamentos inter-raciais costumam ser, em grande
parte, contaminadas pelos conceitos prévios de quem observa e se mostra
pouquíssimo preocupado/a em saber como as pessoas envolvidas efetivamente
pensam e vivem esses relacionamentos. Reconheço que o racismo faz
com que muitas/os mulheres e homens negros deixem de ver a seu/sua “igual” como
um par afetivo-sexual possível, mas há outros aspectos que precisam ser
destacados, pois muitas opiniões a respeito, que faziam
sentido em períodos anteriores, atualmente são insuficientes para dar conta de
uma realidade que sofreu transformações ao longo das últimas décadas. Diante
da importância deste assunto, não somente para as pessoas envolvidas num
relacionamento deste tipo, mas para a sociedade como um todo, volto a propor
uma reflexão sobre o tema, abordado na dissertação de Mestrado defendida por
mim em 2003.
Ainda
hoje há relacionamentos em que as pessoas têm seus papéis rigidamente definidos
segundo o gênero, mas é necessário atentarmos para as transformações pelas
quais passaram o casamento e os relacionamentos afetivo-sexuais nas últimas
décadas, pois essas mudanças contribuíram sensivelmente para o modo como muitos
relacionamentos, inclusive os inter-raciais, atualmente se estruturam.
Apesar
do racismo e do patriarcado continuarem operantes, há casais que conseguem
estabelecer uma relação em que a busca por igualdade é a tônica. A
representação social de uma pessoa negra como um par indesejado, seja homem ou
mulher cis ou trans, não está presente no relacionamento inter-racial assumido
publicamente, o que faz com que esse tipo de união desafie o racismo, em vez de
reiterá-lo. Uniões inter-raciais homoafetivas - ainda que muitas continuem
reproduzindo o padrão heteronormativo, também desafiam os padrões de gênero e
raciais socialmente impostos.
Não
podemos desprezar a importância dos movimentos feministas (em suas mais
diferentes expressões) na indução dessas mudanças. A defesa do direito ao livre
exercício da sexualidade, da união por afinidade e do prazer sexual recíproco
são elementos-chave em boa parte dos relacionamentos ocorridos na atualidade. A
negociação entre os/as parceiros/as pode, inclusive, garantir a exigência ou
não de fidelidade, que passou a valer para ambos, não somente para as mulheres.
As escolhas afetivas deixaram de ser determinadas exclusivamente por imposições
familiares e o constrangimento dessas escolhas pela raça é menor ou inexiste em
alguns contextos, ainda que o racismo continue operando em nossa sociedade. A
opção por permanecer sozinha/o, ou eventualmente acompanhada/o, também é algo
bastante comum e valorizado contemporaneamente, e isso não necessariamente
significa que a pessoa assim se comporta por ter sido desprezada como par. Para
essas pessoas, vale o ditado: “Antes só do que mal acompanhada/o!”.
Enquanto
o entendimento sobre as relações inter-raciais estiver marcado por uma
perspectiva dicotômica, muito pouco contribuiremos para a luta antirracista. É
reducionista a explicação dos relacionamentos
inter-raciais como sendo motivada apenas por uma insatisfação do/a
parceiro/a negro/a consigo próprio/a. Há negros e negras muito bem resolvidos
em relação à sua negritude e que convivem com pessoas não-negras.
Desejar
que as pessoas negras se reencontrem afetivamente e rompam com os grilhões
impostos pelo racismo não requer uma abordagem monolítica e prescritiva, forma
de considerar os relacionamentos que aprisiona os sujeitos e suas
possibilidades de ação em esquemas previamente determinados. Além de autoritário,
esse modo de enxergar a realidade limita as possibilidades de existência do ser
humano negro, que já é tão afetada pelo racismo. Por outro lado, não podemos
perder de vista que a união entre pessoas negras que se amam e se respeitam
assume um caráter político importante na luta contra o racismo antinegro, pois reafirma
a nossa capacidade de amar uns/umas aos/às outros/as e possibilita a construção
de relações em que a empatia do par branco em relação ao racismo sofrido pelo par
negro dá lugar ao compartilhamento da experiência vivida entre negros/as, que é
um elemento poderoso na construção desse tipo de parceria.
[1]
Termo pejorativo para usado por
alguns/mas ativistas para denominar homens e mulheres negras que escolhem
brancas/os como pares afetivo-sexuais
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