Nós, mulheres negras, historicamente
familiarizadas à rua como um espaço de trabalho e luta pela sobrevivência, no
contexto contemporâneo de luta pela afirmação de direitos, temos ocupado esse
espaço como forma de denunciar violações e afirmar nossa humanidade. As marchas
são estratégias de ocupação coletiva da rua com intenções expressamente
políticas. São momentos de luta pelo reconhecimento da dignidade de mulheres e
homens negros, sejam elas/es conscientes ou ignorantes quanto à importância da
organização coletiva para o enfrentamento do racismo, do sexismo, da homofobia
e de tudo o que nos oprime. Além do enfrentamento à violência, que
incide sobre nós e os nossos das mais variadas formas, o empoderamento por meio
da estética tem sido uma das pautas que contribuem para pavimentação desse
caminho político traçado há séculos.
Os passos daquelas e daqueles que nos antecederam
fortalecem a nossa caminhada, nos fornecem pistas dos caminhos que devemos
trilhar. Esses passos reverberam o passo calmo das nossas avós, o passo ligeiro
dos quilombolas em fuga e o passo altivo das/os nossas/os lideranças, mas,
sobretudo, traduzem luta, inventividade e resistência. Nesse sentido, quem
marcha nunca marcha sozinha/o, leva consigo o bastão forjado nas lutas
passadas, que revigora e renova os horizontes que seguirão orientando a nossa
caminhada em busca de paz para existirmos.
Nas narrativas sobre nós, negras/os, é muito
comum a ênfase ao que o racismo destruiu e destrói - o que é compreensível,
dado o seu potencial devastador. No entanto, é preciso que, sem ingenuamente pensarmos
que não falarmos sobre ele dará conta do problema, marchemos também para
celebrar o que construímos coletivamente, apesar do racismo. Como negras/os,
não podemos nos dar ao luxo de pensar, seguindo o teorema de William Thomas
(teórico interacionista simbólico), que apenas por definirmos uma situação como
real, ela será real em suas consequências, pois pesa sobre nós o fardo do
racismo, que nos atinge sem que com ele tenhamos qualquer sintonia ou intenção
vivificadora.
É preciso seguir e nos mantermos de pé,
revelando e renovando os conhecimentos produzidos por nossos antepassados e, principalmente,
buscando facilitar a criação de possibilidades para que os/as nossos/as jovens
desenvolvam suas potencialidades e consigam driblar a morte planejada no
conforto dos lares abastados e nos bastidores institucionais.
Devemos nos lembrar dos exemplos de luta,
recuperar estratégias coletivas de resistência que possam nos manter firmes e
não nos fazerem sucumbir. Para isso, precisamos manter nosso amor próprio, cuja
permanência requer o amor pela outra pessoa negra também destituída de amor.
Com isso, debelaremos uma estratégia de dominação típica de contextos como o
Brasil, onde a dominação colonial se perpetua na colonialidade do poder, que
controla e inibe os vínculos e os afetos que fazem nascer o sentimento de
pertencimento.
Marchamos porque resistimos!
Marchamos porque existimos!
Texto originalmente publicado nos Cadernos Sisterhood, v. 2, n. 1, maio 2017, p. 23-24.
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