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quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

A vida oculta das mulatas


Stefano Martini/Época
SOLITÁRIA
Rose Bombom na quadra da Grande Rio. O trabalho de mulata show atrapalha a vida amorosa
12/02/2011 - 09:28
Um documentário mostra como elas são depois que o show acaba. Não é como nas fantasias
Martha Mendonça
Estrela da escola de samba Grande Rio, a passista Rose Bombom, de 21 anos, esbanja simpatia e beleza. O contraste da pele negra com os olhos verdes é raro e espetacular. Registrada como Rose Claudia dos Santos, ela tem porte de princesa, mas mora num barraco na Favela Parque Centenário, em Duque de Caxias. Ela ajuda a avó – com quem mora desde os 8 meses, quando foi abandonada pela mãe – a sustentar oito primas menores. Namorado, faz tempo que não tem. O último terminou por causa do samba. “Ele falou: ‘Se você me amasse, largaria tudo’.” Rose preferiu ficar sozinha. “Ser mulata é uma coisa que está no sangue. Já vem de pequena”, diz ela, misturando cor e personagem, origem e profissão.
O cotidiano das chamadas mulatas show, aquelas que trabalham sambando, aparece pela primeira vez no documentário Mulatas – Um tufão nos quadris! , do diretor Walmor Pamplona. Em primeira pessoa, elas contam suas histórias. Falam de família, vaidade, religião. E de trabalhos que não têm tanto glamour, mas complementam o orçamento doméstico. São pessoas reais. Suas histórias desmentem o estereótipo e mostram como as mulatas se tornaram uma espécie de produto. Ser mulata exige, nos dias de hoje, muito mais do que exibir cor e traços intermediários entre o branco e o negro. A mulata do imaginário popular, que faz sucesso no samba e na televisão, tem, além do corpo escultural, habilidades de dançarina e talentos de atriz. Não apenas para sorrir o tempo inteiro. Mas para encarnar, de forma convincente, um personagem que pouco tem a ver com sua existência.
Ana Pérola, de 24 anos, é um bom exemplo das contradições entre a mulher e o mito. Ela estrela os shows noturnos da Mocidade Independente de Padre Miguel. À noite. Durante o dia, é gari no Rio de Janeiro. O uniforme laranja da Companhia de Limpeza Urbana é bem diferente do biquíni de paetês e das plumas que ela usa quando se apresenta. “As pessoas pensam que para ser mulata basta vestir um biquininho e sambar”, afirma ela, cujo nome verdadeiro é Ana Lúcia da Silva. Rafaela Bastos, de 29 anos, passista da Mangueira, fez faculdade de geografia. Amante dos livros, gosta de pensar a mulata através da história. “Tudo isso vem da escravidão. Os negros eram comprados por sua força e beleza”, afirma.
Rafaela tem razão. Esse tipo físico de brasileira mestiça ganhou prestígio devido aos fetiches escravocratas – que, de alguma forma, permanecem. Filha do branco descendente de portugueses com a negra trazida da África, a mulata virou símbolo de sensualidade e permissividade. No século XVIII, Gregório de Matos escrevia sobre a intensa atividade sexual das mulatas na Bahia. Na virada para o século XX, Aluísio de Azevedo reforçaria esse símbolo com sua Rita Baiana, de O cortiço, uma das personagens mais famosas de nossa literatura. Descrita como bonita e sensual, era comparada pelo autor a uma “cadela no cio”.
Um das coisas que o documentário de Pamplona deixa claro é que, às vezes, a mulata sedutora pode ser apenas ficção. Tânia Bisteka – Tânia de Fátima Souza Lima –, de 36 anos, casou-se com o homem que amava, mas o flagrou com outra mulher quando estava grávida de cinco meses. Com o choque, perdeu o bebê e nunca mais quis ter filhos. Sônia Capeta, da Beija-Flor, destrói outro tabu. Aos 50 anos, Sônia Maria Regina da Silva, a ex-rainha de bateria, revela que, depois de decepções amorosas com homens, agora vive com uma mulher. “É igual, o amor é o mesmo”, diz. Apesar da cintura fina e do quadril frondoso, uma mulata nunca é igual a outra.
Se a vida real das mulatas reflete a pródiga diversidade humana, o papel que elas interpretam no imaginário nacional é sempre parecido. A mulata lasciva do Brasil colônia foi sucedida pela mulata fogosa do Brasil imperial. Agora, virou a mulata show do Carnaval e da televisão. Lançada pelo teatro de revistas, essa é a mais recente encarnação do velho mito. Foi lançada por Carlos Machado, que começou a colocar mulatas em seus espetáculos. Elas fizeram sucesso, e a moda chegou às escolas de samba, que já tinham passistas. “Hoje, mulata é uma profissão, que exige talento e disciplina”, diz Sérgio Cabral, especialista em Carnaval.
Idealizador e roteirista do documentário, o jornalista Aydano André Motta diz que, ao longo da pesquisa, percebeu o preconceito em relação à expressão artística das mulatas. “Poucas pessoas olham para elas como artistas de verdade”, afirma. Por isso, muitas mulatas tentam reconhecimento – e dinheiro – como dançarinas fora do Brasil. Uma opção que tampouco é fácil. Elaine Ribeiro, de 28 anos, ex-rainha da Porto da Pedra, saiu do Brasil aos 18. Morou em diversos países, sempre dançando. Viveu por seis anos na Itália. Nem sempre tinha dinheiro. Voltou sabendo falar três idiomas. Hoje trabalha em um hotel, no Rio de Janeiro. Dandan Firmo, de 28 anos, do Salgueiro, mora no Morro do Vidigal. Também já tentou o exterior. Por um ano, viveu em Moscou. “Passei frio e muita solidão”, afirma. Havia dias em que ela não podia sair de casa por causa dos ataques de skinheads. “Eles não toleram gente de outra raça e imigrantes.” O Brasil mais do que tolera as mulatas. Admira-as mesmo, mas talvez ainda não as entenda direito.
   Divulgação
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